terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Um Mito Nada Moderno


Excerto de “A Desconstrução de um Mito”, de Carlos Reis e Ubirajara Franco Rodrigues. Reprodução gentilmente autorizada.
Em ufologia, como em qualquer outra área do conhecimento, uma conclusão prematura é inescapável ao erro, já que a elaboração de um argumento anêmico, impreciso, meramente indutivo torna-se presa fácil do raciocínio lógico. A neutralidade e a isenção, normalmente ausentes nestes casos, propiciam uma linha sinuosa na defesa de conceitos pré-estabelecidos. É preciso empregar a técnica socrática para desfazer falsas crenças e eliminar os agentes maliciosos de pensamento. De um ponto de vista mais técnico, a falta de rigor no levantamento de dados, a análise e interpretação malfeitas dos fatos e o uso incorreto de metodologias confiáveis impedem a geração de conhecimento.[1]
O mito dos discos voadores origina-se de uma realidade material desconhecida, mas transcende-a à medida que incorpora dinamismos psicológicos, forças arquetípicas e padrões culturais, forjando um novo significado para a articulação de tais elementos. Esse processo faz com que a realidade material que serve de substrato ao mito perca toda a importância, submersa pela configuração formada. Chegamos inclusive a nos perguntar se esse mito não existiria mesmo sem qualquer referência ao plano físico, o qual duvidosamente desempenha o papel de mero alicerce para uma construção psicossociológica que lhe supera em importância tanto quantitativa como, sobretudo, qualitativamente.
De acordo com isso, e dentro da perspectiva hermenêutica, a própria ufologia pode ser descrita como um processo de reatualização do pensamento mítico, parecendo construir uma rede holística. Esta, consciente ou inconscientemente, integra os antigos mitos à cosmovisão técnico-coletiva sobre a qual se apoia nossa cultura, completando-a e, dessa forma, transformando-a. Por isso, um dos aspectos mais fascinantes da ufologia é o estudo dos “deuses-astronautas”, que busca suas fontes no passado remoto, assimilando mitologia e história. Seu objetivo, não declarado nem reconhecido, é integrar os discos voadores às raízes do espírito humano, renovando o contato com elas. Quando algo vem à luz – escreve Jacques Lacan – algo que somos forçados a admitir como sendo novo, quando uma outra ordem da estrutura emergeele cria sua própria perspectiva no passado, e então dizemos: isto jamais pôde não ter estado aí, existe desde toda eternidade.[2]
É uma regra empírica cujo alcance pode ser demonstrado até mesmo no âmbito da ufologia. Que o fenômeno Ovni é “uma outra ordem da estrutura”, eis algo que só agora começamos a perceber com todas as suas implicações, e a novidade está em ser algo “velho”, captada pelo menos desde o brado de alerta de Kenneth Arnold. Isto jamais pôde não ter estado aí, disseram os ufólogos, e puseram-se a rastrear os registros históricos, míticos e lendários, bíblia, escrituras indianas, para concluir que somos visitados por extraterrestres “desde toda eternidade”. É quase certo que a busca dos deuses-astronautas seja, de fato, uma busca de deuses.
Se consultarmos qualquer compêndio de mitologia, dificilmente encontraremos um tema que já não tenha sido reescrito em linguagem espacial por Däniken, Charroux, Kolosimo e todos aqueles defensores da teoria dos deuses-astronautas. O sucesso dessa empreitada ratifica a alteridade do fenômeno como fator estruturante da ordem mítico-histórica: os Ovnis podem realmente estar por aí há milhares de anos, mas a novidade é acreditar piamente que se trata de naves espaciais tripuladas por extraterrestres. Essa é uma das mais fortes evidências de que, com os discos voadores, estamos assistindo ao nascimento de um novo mito. Um mito moderno.
No fundo, estamos lidando com uma questão muito antiga – a percepção da realidade conforme a nossa percepção da realidade. Nos séculos 6 e 7 a.C. já se discutia a relação homem-objeto com Sócrates, Tales, e outros grandes pensadores. Protágoras, o pai do relativismo, foi exilado em 415 a.C. só por afirmar que com relação aos deuses, não posso ter certeza de que existem ou não, nem de como são em aspecto; pois são muitas as coisas que bloqueiam o conhecimento seguro – a obscuridade do conhecimento e a brevidade da vida humana.[3] Mas esse é apenas o ponto de partida. Atravessamos dois milênios e a discussão permanece em aberto, para deleite – ou desespero – dos filósofos. Entretanto, trata-se aqui não de discutir ou filosofar a realidade do fenômeno Ovni que é – perdoe a redundância – indiscutível. O problema são os procedimentos na abordagem do fenômeno, estes sim, altamente discutíveis.
O rei está ou não nu?
No sentido mais estrito, nada pode ser verdadeiramente provado por indução, e a ufologia tem tirado suas conclusões através de propostas eminentemente indutivas – aquelas que sãoprováveis à luz das evidências. A questão é que não existem evidências e sim indícios, e essa diferença linguística faz muita diferença. Enquanto o fenômeno é circunstancial, instável, atípico, inapreensível, insinuante e dissimulado, sua pesquisa é ilusória, caótica, inconclusiva e tendenciosa. Essa fratura inviabiliza a consolidação das relações entre um e outro. É preciso reaprender as formas de investigação, romper o fio tênue do discurso vazio e arejar um ambiente saturado de caprichos quiméricos. É essa a ufologia que está aí, que corre solta ao sabor dos ventos, onde aventureiros, crédulos, bem-intencionados, franco-atiradores, ingênuos, viajantes, visionários, delirantes e diletantes se cruzam e se afastam, se chocam e se repelem, sem quaisquer perspectivas de voos mais altos ou mergulhos mais profundos. É a parte visível daquele iceberg.
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O rei está ou não vestido?
A verdadeira ufologia não é essa que desfila diante dos nossos olhos
Dentro do leque de manifestações que fazem a ufologia se assemelhar a um inextrincável quebra-cabeças, estão as abduções, cuja credibilidade é altamente questionável em razão de um quadro conhecido como “sintomatologia de abdução pós-traumática”, ou seja, sequelas físicas e comportamentos observados nas pessoas que afirmam terem sido sequestradas por alienígenas. Mas estes sintomas e estas marcas também se produzem por outras causas, outro ponto controverso na investigação dessas narrativas. Há um mecanismo inconsciente em ação que tem sido objeto de estudos não apenas dos psicólogos e psiquiatras – especialistas mais diretamente envolvidos com essa casuística – como também dos neurologistas, sociólogos e antropologos, já que é necessário primeiro separar aqueles componentes inconscientes para se chegar a um diagnóstico mais correto. É consenso entre estes estudiosos que diversas outras experiências apresentam o mesmo quadro sintomatológico, como as Experiências de Quase-Morte (EQM), as chamadas “viagens astrais”, se forem realmente possíveis, e o uso de alucinógenos, entre outras.
O que não se sabia sobre o funcionamento do cérebro, décadas atrás, começa agora a ter maior e melhor conhecimento. O desenvolvimento de novas drogas para uso medicinal, principalmente com aplicação em neurologia, tem proporcionado aos pesquisadores descobertas quase revolucionárias que colocam em xeque certas crenças no campo da parapsicologia, como a “projeção astral”, por exemplo. Em 2002, o neurologista suíço Olaf Blanke descobriu que, excitando determinadas áreas do cérebro através da estimulação elétrica em pacientes prontos a serem operados para o tratamento de epilepsiaele provocava o desencadeamento de sensações como abandono do corpo e flutuações pelo recinto.
Os médicos da equipe de Olaf, dos Hospitais Universitários de Genebra e Lausanne, acreditam que o giro angular seja o local onde a informação visual é associada com o sistema de representação do corpo através de dados sensoriais, como o tato. Ao que tudo indica, existem no cérebro grandes áreas relacionadas às emoções, que se encontram fortemente ativas durante as experiências místicas, os estados meditativos, as experiências extracorpóreas e as experiências próximas à morte. Do mesmo modo, dois pesquisadores da Universidade da Pensilvânia, Andrew Newberg e Eugene D’Aquili, que escreveram o livro Why God won’t go away (Porque Deus não vai embora), estudaram grupos de meditantes budistas e freiras franciscanas em oração, e comprovaram que em estado de oração ou meditação profunda ocorre uma diminuição drástica da atividade cerebral no lobo parietal superior, justamente a mesma área do cérebro responsável pelo senso de orientação no tempo e no espaço, bem como a diferenciação entre o indivíduo e os demais seres e coisas.[4]
O que significa isto? Aonde queremos chegar? Significa que o avanço da ciência, em particular da neurobiologia, está abrindo novos caminhos a respeito da investigação cerebral, caminhos nunca antes trilhados porém intuídos e exaustivamente procurados. Com isso, queremos dizer que toda e qualquer manifestação de caráter paranormal, mediúnico, místico, esotérico, ocultista, que tenha suas raízes na mente humana, deve ser reexaminada profundamente, sem qualquer preconceito. Seria lícito supor – por mais absurdo que possa parecer – que existem áreas no cérebro cujos circuitos são especializados em fé ou apego religioso? É exatamente aí que se inicia a penumbra do nosso conhecimento. Talvez por isso os neurocientistas tenham se negado sistematicamente a dedicar tempo e pesquisa ao tema.Esse é o pensamento do Dr. Edson Amâncio, neurocirurgião do Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Ele lança ainda uma outra dúvida: Pode uma avaria, um curto-circuito nas redes neurais que parecem governar a fé, desencadear uma crença que não existia ou estava adormecida?[5] Se as perguntas estão apenas começando, não se pode pretender respostas definitivas de quem quer que seja. De qualquer forma, recomendamos que guarde bem esta informação, porque ela será bastante útil quando chegarmos ao capítulo “A árvore de dourados frutos”.

[1] Oliva, A.; op. cit.
[2] O Seminário, livro 2: O Eu na Teoria de Freud e na Prática Psicanalítica. Jorge Zahar Editor, RJ, 1985.
[3] Fearn, N.; Aprendendo a Filosofar em 25 lições, Jorge Zahar Editor, RJ, 2004.
[4] In O cérebro e as viagens astrais, Dr. Luiz Otávio Zahar, www.ippb.org.br
[5] Scientific American Brasil, Religião e Epilepsia, abril de 2006

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